Terra firme.

 

Fiz o tratamento de câncer de mama em outra cidade, viajamos muito até que durante a radioterapia passei a morar lá. Era preciso ir ao hospital todos os dias.

Sentia como se viesse de uma tempestade em alto mar e nesse estágio final parecia que, pela primeira vez, eu tinha conseguido me agarrar em algo, levantar a cabeça e respirar. Acho que foi quando me dei conta de que tinha sobrevivido.

Ao pisar nessa terra firme, comecei então a catar meus cacos. Eu não tinha passado ilesa, estava viva mas aos pedaços, rasgada literalmente. Eu sobrevivi por que Deus e pessoas foram generosos, e isso me emociona muito, mas também por que resisti, quando nadei.

Foram as informações, conceitos, exemplos, ensinamentos, sugestões, teorias, sabedorias com os quais tive contato que me ajudaram a lidar de forma menos dramática com a situação delicada que vivia. Na última fase do tratamento me vi pronta para montar essa coucha de retalhos de mim, que me daria contorno novamente, e o que usei para me alinhavar (agora eu mesma me costurava simbolicamente), foram esses insights.

Escrevi um livro a partir desse retiro, não por ego, pra sobreviver. Ele me devolveu a inteireza. Me enxerguei de novo como uma totalidade potente, não como pedaços, órgãos, doença a ser exterminada, organismo defasado como consequência de uma perda.
Me vi como complexidade, cuja integridade não depende só da soma de partes.

Tem um sopro de vida em nós que luta incessantemente pra permanecer e que se manifesta como subjetividade imanente. Uns chamam de alma, outros espírito, luz, etc. Que, independentemente do nome, acontece em cada ser vivente e é nosso tesouro, o patrimônio mais valioso, submerso em meios às águas que nos constituem.

Águas que vem e vão, marés que sobem e descem, são serenas e por vezes intempestivas, levam e trazem, mas o tesouro está lá, nas profundezas, abundante, denso. Ele pode ser acessado, e usufruir dessa riqueza pessoal é um direito e uma dádiva, é herança e conquista, mas pra isso acontecer um mergulho abissal é necessário, o que requer coragem e fôlego.

E você tem.

Se apropriar desse bem simbólico é a maior das jornadas, e eu já dei início à minha. E não tem volta.

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